domingo, 4 de agosto de 2013

IN THE FLESH






Após a vida há morte. É redundante afirmar o óbvio que todos conhecem, mas ninguém, em tese, nunca morreu para saber o que há depois da morte e retornar pra contar. Uns se vão por acidente, outros depois de viverem muito, alguns apenas desejam morrer e ainda tem aqueles que já estão mortos, só não se dão conta disto. Falar de zumbis pode ser tão banal quanto falar de morte, hoje em dia. Naturalizados pelo cinema e por outras séries, eis que surge In the flesh, programa da BBC inglesa com (SOMENTE) três episódios, que são tão bem construídos, do início ao fim, contando uma história amarrada em diversas outras histórias e, pasmem, absurdamente original num tempo de "modismo morto-vivo".

TRAILER

O estereótipo é introduzido logo no começo, sob a roupagem adolescente que gera desconfiança, nos remetendo a tudo o que conhecemos sobre o tema e somos desafiados e enxergar o dissecamento de corpos sem vida, mas que querem viver, e de outros vivos, mas podres em suas convicções, estagnados em suas certezas e cegos por suas limitações. As sutilezas de um texto primoroso, nos faz entender como
num mundo pós-apocalíptico, em que os zumbis são tratados e contidos, medicalizados, enxerga-se diversas questões do dia a dia em que não nos damos conta, implícitas abaixo da carne apodrecendo, se acostumando a aceitar o que é imposto. E as indiretas começam então a tomar forma cada vez mais diretas, quando nos deparamos com temas de "racismo", medo, culpa (de diversas perspectivas) e intolerância à inserção na sociedade daquilo que é diferente, ou, ainda que comum, inaceitável por tanto tempo e doutrinamento.

De fato, o "estranho", os zumbis, podem mesmo vir a serem perigosos, voltar a se alimentar de sangue, mas há muito mais por tras da história contada, acompanhada por uma trilha sonora memorável, momentos de tensão, terror, alguns alívios cômicos e um drama que dificilmente não fará chorar o mais "frio" dos "homens". A luta, os pedidos, os questionamentos e as faltas de respostas, se mostram em In the flash como um reflexo da vida real e até o absurdo de estarmos convivendo com mortos-vivos não parece assim tão absurdo diante de tantos outros absurdos cometidos por "vivos", o tempo todo. O que distancia os humanos de monstros, quando tentam se proteger dos monstros, por vezes, nos transforma nos monstros.

Exibida pela BBC3 em março de 2013, a série, criada por Dominic Mitchell, foi renovada para mais uma temporada, que será apresentada ao publico em 2014.

Episódio 1
Episódio 2

Episódio 3



SPOILERS A SEGUIR:

A Human Volunteer Force capturou os zumbis e permitiu a reintegração à sociedade. Além da medicação, as vítimas do PDS (tradução livre pra Síndrome do falecimento parcial) são orientadas a se maquiar e usar lentes de contato. Eles têm sonhos persistentes de seus ataques quando estavam em "surto", apenas famintos por carne humana.

Pouco a pouco, percebe-se que, embora os entes queridos, sentindo falta dos que morreram, queiram de volta os filhos, pais, parceiros, o sentimento de aceitação não é de todos e conseguimos entender as justificativas daqueles que enfrentaram mortos-vivos, sozinhos, salvaram muitos e de repente se deparam com outra realidade. Todos os zumbis que "mataram" podiam ser recuperados, ou pior, os zumbis recuperados podem voltar a matar. Mas tudo muda quando aqueles de quem mais sentem falta retornam. A atitude e os discursos mudam, se adequam, incoerentes, protecionistas e contraditórios até o momento em que não se pode mais negar para si mesmo a verdade.


A história de Keeran está completamente conectada com seu passado, em como ele lidou com a morte, ainda vivo, e como as consequencias da dor trouxeram mais sofrimento. E o mais incrível, o protagonista com um romance homossexual. As pistas são jogadas o tempo todo, mas é interessante ver como conduzem o tema delicado e de repente o tópico "zumbi" é confundido com o tópico "gay", mostrando as dificuldades de aceitação, de si próprios, da sociedade, com frases em duplo sentido, as vezes em sentido triplo também.

Como seria se pudéssemos encontrar todos que ficaram após a nossa morte? Tudo depende de como morremos, logo, de como vivemos. Em alguns momentos vemos o desejo de ter de volta alguem desaparecido tomar lugar da fé cega. O comumente visto já inserido na concepção de que se mordido por um zumbi, transformado será e neste cenário de "reabilitação" ser infectado é quase uma sorte. Como os que podem portar HIV, no passado sentiriam-se condenados, mas atualmente sabem que há como lidar com o vírus.

Nos punimos o tempo todo com as nossas decisões e mentimos para tentar consertar, mas queremos que não mintam para nós. Temos medo, medo principalmente do que passa com o outro, não da morte em si. Fingimos sorrisos e fugimos e escondemos a nossa vida. Com certeza, a cena mais marcante é a última e como toda a história corre para este desfecho emocionante, que não tem muita relação com zumbis (talvez nada na série tenha), usados como pano de fundo de histórias mais profundas e emocionantes, a de gente viva, que muitas vezes guarda tudo e num único momento coloca pra fora (e faz quem assiste chorar junto).

O sucesso da série foi atingiu um publico de quase 700 mil telespectadores no primeiro episódio. Entretanto, o boca-a-boca parece ter sido mais eficiente que a divulgação da emissora. Destaque para os atores (todos) e para a trilha sonora.